Uma Noite um Caminhante Sob a Chuva
Costumava, em noites de chuva fraca ou de garoa (a cidade onde morava era chamada naquela época de Cidade da Garoa) percorrer alguns quarteirões depois de jantar. Essa caminhada a passos lentos me proporcionava uma agradável sensação de paz, de bem-estar físico. Devia ser por volta das 21 horas. Havia poucos transeuntes na avenida bem iluminada. De repente, me deparei com uma idosa, sentada na calçada sobre uma caixa de madeira, sob a marquise. Vestia uma roupa que parecia de cigana ou de hippie. Não levava jeito de mendiga – ou seria? Parei na frente dela e perguntei, não sei por que, se ela já tinha jantado.
– Não, respondeu.
– A senhora quer que lhe traga um sanduíche? Tem uma lanchonete na esquina.
– Quero um sanduíche de presunto cru e provolone.
Caramba! pensei. A falsa mendiga tem bom gosto. Por sinal é meu sanduíche preferido.
– Aguarde um pouco que eu já lhe trago.
E fui comprar o lanche. Voltei. Entreguei e ela começou a devorar a minha pequena oferta gastronômica.
– Adoro presunto cru com provolone.
– Eu também, respondi.
– Quer um pouco? perguntou.
– Não obrigado. Já jantei.
– Muito obrigada, moço.
Levantou-se. Abriu o guarda-chuva e perguntou:
– Qual é sua graça?
– David.
Ela riu.
– Por que a senhora está rindo?
– Porque eu me chamo Betsabé.
– Coincidência, comentei.
– Não é coincidência. Anote meu endereço: boulevard Crepúsculo, 999. Venha me visitar.
– Boulevard Crepúsculo, 999, repeti.
Ao se levantar, senti seu perfume, que parecia ser patchuli. E foi embora, comendo.
Que anciã maluca, pensei.
Fique parado. Um tanto intrigado. Ela virou a esquina. E subitamente, deu-me vontade de acompanhá-la. Fui atrás. E percebi que ela desaparecera. Quem era essa estranha figura noturna? Uma ricaça extravagante? Uma louca?
Senti então o rastro do seu perfume. E segui seu odor de patchuli para me guiar. Pois eu não sabia onde ficava o boulevard Crepúsculo. E, aliás, nunca ouvira falar dessa via pública.
Encontrei, depois de uma caminhada de meia hora, o boulevard Crepúsculo. E, finalmente, o número 999. Apertei a campainha.
Uma voz de homem perguntou:
– Quem é?
– Sou David Haize.
Abriu. Era um senhor de bastante idade vestindo um terno surrado de mordomo. Ouvi então o miado de um gato e o crocitar de um corvo. Atravessei o vestíbulo atrás do mordomo, que mancava. A mansão era mal iluminada e ostentava poeira e teias de aranha por todos os cantos. Conduziu-me a um salão no escuro e pediu que aguardasse. Na escuridão.
Inesperadamente, uma luz negra iluminou o salão e uma mulher, aparentemente velha, começou a bailar, ao som de uma cítara, a dança dos sete véus de Salomé. E me pareceu então vislumbrar a deslumbrante Rita Hayworth executando a coreografia no filme de William Dieterle. Num determinado momento, cri distinguir o olhar felino de Gloria Swanson e, num outro piscar de olhos, a beleza sensual de Rita-Gilda-Salomé.
Subitamente, a música cessou e a luz se apagou. E fiquei no escuro até o mordomo acender o lustre e me levar a uma alcova onde me aguardava uma mulher na cama, que disse:
– Vem, meu amor.
Quem era a mulher? A alcova estava na penumbra e era impossível distinguir os traços da… bailarina? Da… idosa? Ou de quem? Só sei que, não sei como nem porque, me senti repentinamente excitado. Seria a atmosfera onírica dessa mansão que me provocava o desejo?
Tirei a roupa e entrei na cama. Toquei a mulher e notei a flacidez de seu corpo. Mas isso não diminuiu a vontade sexual. E, sem muitos preâmbulos, fui direto ao alvo. Ao penetrá-la, ela gritou mais que gemeu. E seu corpo se transformou. Suas carnes tornaram-se rijas, duras, jovens, apetitosas. Gozei rapidamente e adormeci. Quando acordei, com um toque do mordomo, já era dia.
– O café da manhã está servido. Suco de toronja, morangos, presunto cru, queijo provolone, ovos mexidos com bacon, pão integral e palmiers. Café ocidental, café turco ou chá verde com hortelã.
Aceitei. Por que não? Mesmo porque esperava ver minha misteriosa anfitriã à mesa. Mas ela não apareceu. Talvez para não romper o feitiço.
Saí da estranha mansão do 999 boulevard Crepúsculo. Ainda chovia. Abri o guarda-chuva e fui caminhando para casa. Leve. Feliz. Assobiando Manhã de Carnaval, de Luiz Bonfá.
27-08-22
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