Entrevista com Empregada Doméstica Negra
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– Pior do que mulher negra e doméstica é ser pobre/ Negra com dinheiro alivia o racismo/ A discriminação é mais social do que racial/ Muito coisa teria de mudar neste país para ser um país mais justo/ Negra não precisa de tapinha nas costas de branco paternalista/
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– Se ser a favor dos direitos da mulher é ser feminista então sou feminista/ Mas as ricaças sempre têm mais oportunidade de serem mais feministas do que as negras pobres/
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– Tenho consciência social sim/ E certamente não a aprendi na TV/
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– Obrigada/ Negra do povão não é burra nem ignorante/ E se me expresso bem é porque leio o que deve ser lido/ Quando era criança eu lia os jornais velhos que embrulhavam as compras que minha mãe fazia na feira/ Presto atenção no jeito de falar das pessoas que têm escola/ Daqueles que tiveram a oportunidade de estudar/ Sempre quis estudar/ Mas não foi possível/ Sempre tive que trabalhar para sobreviver/ Desde menina/ Desde os 12 anos/ Neste país miserável pobre nasce pobre e morre pobre/ O resto é história para inglês ver/ Mentira dos donos do sistema/
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– Sim/ Acredito em Deus/ É preciso ter força fé e esperança para continuar a lutar/ Para tocar o barco do dia a dia/ Só não acredito em picaretas/ Não preciso de intermediários para chegar a Deus e conversar com ele/
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– Não/ Não tenho ressentimento/ Vejo as coisas claramente/ Gosto muito dos meus patrões/ Há 20 anos que trabalho na casa deles/ Não posso me queixar/ São legais/ Muito humanos/ Eles têm me ajudado muito/ Me incentivado muito/ Eles me emprestam livros para eu ler/ Querem que estude/ Mas fica muito difícil para mim estudar/ Com casa marido e três filhos/
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– Meu marido é um homem bom/ Pedreiro/ Me ajuda em casa/ Ganha a metade do que eu ganho/ Por isso eu não posso deixar de trabalhar / Está tudo muito caro/
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– Não/ Ele não é negro/ É branco/
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– É claro que não tenho preconceitos/ O ser humano é tudo igual seja negro branco ou amarelo/ Tem bons e ruins em todas as raças/
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– Se eu me considero uma mulher feliz/ Sim/ Sou uma mulher feliz/ Amo meu marido e meus filhos/ Talvez eu sinta uma certa frustração por não poder estudar/ Talvez um dia eu possa estudar/ Ainda não sou velha/ Mas não sou uma mulher frustrada/ Eu me revolto com as injustiças deste país onde existe uma lei para os ricos e uma lei para os pobres/ E não tenho muita paciência para ouvir as pessoas que comem todos os dias e que têm casa chorar de barriga cheia/ Ou fazer discursos edificantes para os pobres terem fé em Deus e baixarem a cabeça porque Deus resolve todos os problemas/ Não cabe a Deus resolver todos os problemas/ Cabe ao ser humano/
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– Obrigada eu/
24-02-23
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