A Velha Xícara Encantada

A Velha Xícara Encantada

        Uma véspera de Natal… Não, não se trata de uma crônica natalina. Nem de um conto natalino. Ou talvez seja uma crônica-conto para as festividades de fim de ano.

        Uma véspera de Natal, de manhã, na hora de preparar o pequeno almoço como dizem os portugueses, quebrei a xícara de chá onde costumava tomar o café com leite. E fiquei triste. Triste por ter quebrado uma xícara? Sim, triste por ter quebrado um simples utensílio de cozinha. Mas que importância poderia ter uma xícara quebrada? Porém, tinha. Pois era uma velha xícara que herdara da minha mãe.

        E pulei no tempo. E mergulhei nas lembranças. Não na época, bem longínqua, tangerina. Mas num período mais recente, o paulista. Era uma xícara branca, com apenas uma pequena flor de cores suaves pintada. Sóbria e elegante de formato, na qual minha mãe sempre me servia o café com leite de manhã. E quando a minha mãe partiu, eu quis ficar com tão grata recordação. E durante mais de 30 anos, passei a tomar o café com leite matinal na querida xícara.

        E, sem querer, talvez devido à melancolia que impregna as pessoas na época de Natal, passei o dia recolhendo doces vestígios do passado que pipocavam na minha memória. Flashes que iam se alternando sem muita ordem, desde as comidas saborosas que minha mãe fazia, como favas verdes refogadas com cubinhos de presunto cru, até puchero ou cazuela de fideos ou migas com sardinhas fritas, até a visão de meu pai assistindo a velhos filmes na TV com Nina, a gata cinza, enroscada no pescoço como se fosse um cachecol. Ou então pequenos prazeres – que na realidade podiam ser pequenos, mas eram intensos – que praticava, por usar esse termo, na casa dos meus pais, que tinham transformado o quintal num pequeno jardim cheio de plantas e três árvores, um pessegueiro e dois pés de nêsperas. Nesse canto de verdor, tarde à noite, com chuva, sentado num banco feito pelo meu pai, sob o alpendre, eu suspendia o tempo, contemplando a folhagem molhada iluminada pela lâmpada do jardinzinho. E viajava numa sensação que tomava conta do meu corpo e da minha mente. Ou então, em noites quentes, no mesmo lugar, tomava, totalmente pelado, banho de chuva refrescante.

        Ah, doce clima do passado trazido pelo Natal… E à noite desse mesmo dia, sonhei que…

        Eu era menino e fora ao parque de diversões da avenue d`Espagne, na praia, em Tânger, no crepúsculo. Subi num carrossel e sentei, entre outros muitos brinquedos, dentro de uma xícara como a da minha mãe. E de repente a xícara se desprendeu do carrossel que dava voltas e se elevou no ar. E foi subindo e girando. E se afastou do parquinho. E girou sob as estrelas. E sobrevoou as luzinhas da cidade de Tânger. E foi se afastando daquele lugar. Sempre acompanhada pela música Sobre as Ondas, de Juventino Rosas, que costumava se ouvir nesses lugares de diversões. E me sentia livre e feliz, voando como nos sonhos. Mas inesperadamente levantou-se uma ventania. Senti frio. A xícara pareceu perder o equilíbrio. E começou a descer, mas sem girar, apenas balançando da direita para a esquerda.

        Já era noite quando acabou pousando numa clareira de uma floresta. Saí da xícara aérea e fui caminhando em direção a uma luz. Era uma cabana de troncos aonde cheguei quando começava a chover. Ia chamar à porta quando esta se abriu e apareceu um idoso com uma vela no castiçal.

        – Entre. A janta está pronta, disse o homem.

        Sem perguntar nada, entrei.

        – Temos canja de perdiz com legumes, queijo de cabra, pão, tâmaras secas e chá verde com hortelã.

        Colocou a vela sobre uma mesa redonda ao lado da qual havia duas cadeiras. E pegando uma concha, encheu-me uma tigela de sopa do tacho pendurado na lareira acesa.

        E jantamos. Enquanto chovia a cântaros.

        Então o homem perguntou:

        – Como veio até aqui?

        – De xícara.

– De xícara? riu o homem.

        – Por que o senhor está rindo?

        – Porque nunca vi ninguém viajar numa xícara.  

        – Pois eu viajei.

        – Você é valente.

        – Sou. Não tive medo de sair voando pelo céu.

        – O mundo é dos valentes.

        – O senhor também é valente?

        – Digamos que sim.

        – O senhor mora nesta cabana?

        – Não. Vim aqui para te ver, pois sabia que você viria.

        – Para me ver?

        – Sim.

        – O senhor conhece meus pais?

        – Sim.

        – Quem é o senhor?

        – Eu sou você quando menino.

        – Não entendo.

        – Quando você for velho, vai entender. E agora sente nessa poltrona perto da lareira e descanse um pouco da viagem.

        – Mas não estou cansado da viagem.

        Sentei-me na poltrona.

        O homem abriu uma arca, pegou uma coberta e cobriu minhas pernas.

        E adormeci com o som da chuva na floresta.

        Acordei na minha cama.

24-12-22

2 respostas para “A Velha Xícara Encantada”.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s