Estação Tarzuk
Quando acordei, estava num TGV (trem de alta velocidade) cuja procedência e destino desconhecia. Pela janela desfilava uma paisagem árida. No painel li que a próxima estação era Tarzuk e que estávamos a 501 km por hora. Eu não sabia de onde vinha nem para onde ia. Não me lembrava de nada. Estaria sonhando? Talvez. Viajara muito durante toda a minha vida e agora, ressurgindo não sei de que canto da memória, via-me no meio de uma súbita visão onírica ao despertar. Despertar? Sim, despertar. La vida es sueño, dizia Calderón de La Barca. Mas, curiosamente, esse sonho não era o recorrente: o de chegar ao aeroporto para viajar e perceber que tinha esquecido meu passaporte em casa e que não dava mais tempo de ir buscá-lo.
– Sou Claire de Segovia, disse uma jovem sentando-se ao meu lado e estendendo a mão.
– Prazer. Prenome francês e cidade espanhola.
– Meu pai é francês e minha mãe espanhola. Sou também Luana de Luxor, aquela que vê tudo.
Pausa.
– Por que o senhor fica com os olhos fechados se o senhor não está dormindo?
– Porque estou sonhando.
– Adorei sua palestra sobre a língua berbere e as etnias que a falam.
– Obrigado.
Silêncio.
Senti o perfume da bela Antonella Lualdi (ou seria o de Romy Schneider ou o de Jean Seberg?) – por sinal a voz da jovem me lembrava a voz da fascinante Delphine Seyrig. Abri os olhos. A jovem desaparecera. Mas a fragrância ficara. Voltei a dormir.
Quando acordei, percebi que estava num trem de compartimentos. E que estava sozinho num compartimento. Movido por uma súbita inquietação, levantei-me e saí ao corredor. Fui ao compartimento seguinte e notei que também se achava vazio. Dirigi-me ao próximo vagão e deparei-me com a ausência total de passageiros. Entrei num compartimento qualquer e sentei-me, desnorteado. Reparei então que havia uma mulher onde acabara de entrar. Uma mulher de idade indefinida, excessivamente maquiada, de tailleur azul escuro dos anos 1940 e chapéu da mesma cor. Estranho, eu não a ter visto logo quando entrei.
– Quem você procura?
Sem pensar e sem saber por que, respondi:
– Joseph Deschamps ou Anastacia Lazarovna.
– Joseph Deschamps está no Marrocos.
– Em Tânger?
– Não. Em Chefchaouen.
– E Anastacia Lazarovna?
– Anastacia Lazarovna está na França.
– Em Paris?
– Não. Em Toulouse.
– O trem está vazio?
– Sim. O trem está vazio. Você é o único passageiro. E eu.
– Quem é a senhora?
– Chamam-me Prepomina.
– Nome grego?
– Sim. Do grego destino.
– E qual é seu destino?
– Vou aonde o trem me leva.
Houve uma pausa. Que interrompi.
– E meus pais? Eu sempre os encontro em trens ou em estações de trem.
– Seus pais estão agora muito longe no tempo e no espaço. Você está sozinho neste trem.
Olhei pela janela para disfarçar meus olhos marejados. Olhos de menino abandonado. Quando desviei o olhar para o interior do compartimento, a enigmática mulher tinha desaparecido. Quem era essa tal de Destiny – para usar o termo em inglês? O que fazia eu nesse trem antigo? Qual era a razão da minha viagem? A procura do tempo perdido? A necessidade da memória de fuçar nas origens? Que misteriosa cidade era essa de Tarzuk, nome que li no painel do trem TGV? O destino? Ou a destinação?
Reclinei-me no assento enquanto olhava a chuva que batia no vidro da janela e ouvia, em surdina, nostalgicamente, Those were the days. Ou seja, Dorogoi dlinnoyu, de Boris Fomin, com letra de Konstantin Podrevskii, na voz de Vladimir Korneev. Adormeci.
Quando acordei, o trem estava parado, envolto em neblina. Reparei que o compartimento era diferente, mais antigo do que o anterior. Desci do vagão. Fazia frio. Era um outro trem, bem antigo, a vapor, da segunda metade do século XIX. Ouvi uma voz de mulher apregoando “pamonhas, pamonhas quentinhas, pamonhas do quilombo”. Caminhei pela plataforma em busca da vendedora, pois dera-me vontade de comer uma pamonha quente. Além do mais, perguntaria à mulher em que estação me encontrava. Seria Tarzuk? Como não se enxergava quase nada, guiei-me pela direção de onde provinha a voz. Encontrei a vendedora. Era uma mulher negra, idosa.
– Uma pamonha, por favor.
– Lamento. Acabaram as pamonhas. Vendi a última para Anna Karenina.
– Para Anna Karenina?
– Sim, para Anna Karenina.
– Que estação é esta?
– Tarzuk.
E a mulher foi embora. Empurrando seu carrinho de pamonhas vazio. Estava parado, sem saber o que fazer, para onde ir, quando, no meio da neblina, surgiu Anna Karenina, que tanta emoção me causara na adolescência, quando Tolstoi ma apresentou. E Anna Karenina apareceu sob os traços de Greta Garbo, que deram lugar aos de Vivien Leigh, que deram lugar aos de Jacqueline Bisset, que deram lugar aos de Sophie Marceau. E eu, imobilizado, olhando hipnotizado essas belas atrizes que surgiam na minha frente sem me ver. E até me pareceu vislumbrar a maravilhosa Jean Simmons, que nunca interpretou a trágica heroína russa.
Ouvi então a voz de Shirley Bassey cantando Yesterday When I was young, de Charles Aznavour.
E quando acabou a música, ouvi a voz de um menino me chamando em espanhol:
– Rodolfo, a donde vas? Que haces aqui? Estás perdido?
Pareceu-me a voz de Moisés, o tangerino catalão, meu amiguinho de infância.
– Moisés, eres tú?
Mas não houve resposta.
De repente um holofote me focou. Percebi que, do outro lado da plataforma, em meio à neblina, havia uma arquibancada onde as pessoas pareciam esperar um show do lado oposto dos trilhos. Compreendi que eu estava ali para interpretar o monólogo de uma peça. E uma súbita angústia me invadiu: eu não sabia qual era o papel que devia interpretar. O meu silêncio provocava vaias do público. Por alguns segundos, permaneci paralisado. Reagi. E a minha reação foi fugir. Ou seja, voltar para o trem, que na hora partiu. Senti-me salvo. Embora o destino do trem fosse uma incógnita.
03-12-22
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