Reencontro com Anastacia Lazarovna
Desembarcando em Casablanca, procedente de Dacar, deparei-me inesperadamente (ou talvez não tão inesperadamente já que ela sempre ficava sabendo dos meus deslocamentos internacionais) com minha velha amiga Anastacia Lazarovna.
– Querida Anastacia Lazarovna, que agradável surpresa, que prazer em revê-la.
– O prazer é todo meu, querido amigo David Haize.
– O que você está fazendo em Casablanca?
– Vim te esperar.
– Mas eu não vou ficar em Casablanca.
– Justamente, meu querido. E eu tampouco vou ficar aqui.
– Vai para onde?
– Vou com você para Tânger.
– Para Tânger comigo?
– Para Tânger com você. Vamos pegar o mesmo voo. A conexão deve sair dentro de uma hora e meia. Vamos tomar um café?
– Vamos. Sabe, vou ficar muito feliz em viajar com a amiga.
– Pois é, meu querido. Você fala tanto de Tânger em seus escritos que me deu vontade de rever Tanjah.
– Sim. Tânger – ou Tanjah – é minha cidade-fetiche. Terra de minha infância, adolescência e primeira juventude. Mas você já esteve em Tânger.
– Sim. Há muitos anos. Mas foi uma viagem muito rápida. Apenas para estar presente no palácio da bilionária Barbara Hutton, na casbá, numa festa com todo aquele monte de gente do jet set.
– Você é única.
– Acho que sou. E por falar na cidade de Ibn Battouta, reservei duas suítes no hotel El Minzah.
– Acia, você é maluca! O El Minzah é o hotel mais caro da cidade.
– E o mais aristocrático. Como eu, que pertenço à velha aristocracia russa, embora seja socialista. Algo assim como Visconti.
– E ainda por cima duas suítes. Para que duas suítes?
– Porque quero que você esteja bem confortável.
– Não precisava.
– Precisava sim, meu querido. Você me contou uma vez que quando você era adolescente você sonhava em ganhar muito dinheiro e um dia hospedar-se no El Minhah.
– Sim, é verdade. E passear pelo belo jardim do hotel.
– Pois eu sou sua fada madrinha.
– Muito obrigado, minha querida amiga. Você é muito generosa.
– Deste mundo não se leva nada na hora da última viagem.
– Está certo. Mas diga-me, o que você tem feito? Tem viajado muito? E onde você está morando agora?
– Estou morando em Auckland, na Nova Zelândia, o melhor país do mundo. Mas continuo a velha globetrotter que você sempre conheceu. Ultimamente passei dois meses em Paris, a mais bela cidade do mundo. Fiquei um mês em São Petersburgo, em casa de uma prima e duas semanas em Vladivostok, visitando uma amiga. Não morro de amores por Vladivostok, mas foi em Vladivostok que perdi a virgindade.
Ri. Ela sempre foi muito engraçada.
– E me fala, Acia. Como está de amor?
– Ah, meu filho, nem me fale! Você acredita que fiquei outra vez viúva? Bom, para falar a verdade, eu já não me caso mais. Depois dos 100 anos, nem me caso mais nem digo mais a minha idade, para não parecer uma velha safada.
O seu humor me fez dar risadas mais uma vez.
– Você pode estar velha, mas é uma velha muito jovem.
– Graças a Deus, meu filho.
– E quem era esse último companheiro?
– Adivinha.
– Um jovem de 40 anos, como você gosta?
– Não. Era um jovem de 80 anos. Mas que, felizmente, ainda funcionava. Tanto é que morreu na cama, fazendo amor. Um conterrâneo meu que conheci na esplêndida Firenze. E por sinal, passamos a lua de mel na bela Granada, e na mítica Biarritz, preferida da nobreza europeia (incluindo a russa) no fim do século XIX. A imperatriz Eugénie adorava Biarritz.
– Você não perde tempo.
– Vou morrer e a terra vai comer.
Chamaram para embarque. Pegamos o avião para Tânger. Uma vez a bordo, ela me disse:
– E agora é a sua vez de me contar como você está e o que tem feito. Você tem 35 minutos para me falar do seu trabalho literário. Mas antes quero te agradecer por ter me colocado neste conto um tanto nostálgico.
– Ah, minha querida. Você sempre será bem-vinda em minha ficção. É um verdadeiro prazer tê-la em meus livros. Bem, comecemos pela “bomba”
– Pela bomba? Que bomba?
– Nem te conto. Nunca pensei que isso fosse acontecer comigo.
– David, não faça suspense. Fale logo.
– Eu não existo, Acia. Eu não existo.
– Como assim, você não existe? Você está sentado, neste avião, ao meu lado, e vai me dizer que não existe?
– Mas é o que falaram.
– Quem falou isso?
– Os meios acadêmicos.
– Os meios acadêmicos?
– Os meios universitários.
– Mas… Eu não estou entendendo.
– Nem eu, Acia. É uma situação kafkiana.
– David, quer fazer o favor de ser mais explícito.
– Fica difícil falar sobre isso.
– Pois vai ter de falar. Senão não vou mais fazer parte de sua literatura.
– Tudo bem. Vou fazer um esforço.
– Faça logo.
– Um mestrando, que você conhece, está redigindo uma dissertação sobre um dos meus livros.
– Que mestrando?
– Joseph Deschamps.
– Sim. Lembro. Tive caso com ele. E que livro?
– O Bárbaro Liberto.
– E aí?
– Aí que ele foi barrado na hora de fazer a qualificação sob a alegação de que esse tal de David Haize é totalmente desconhecido nos meios acadêmicos.
– E…
– E insinuaram que esse escritor não existe. Ou seja, eu seria um escritor forjado, criado, inventado, fictício. Uma fraude. Um impostor. Um escritor fantasma.
Depois de você ter publicado 40 livros?
– Sim, depois de eu ter publicado 40 livros abordando todos os gêneros literários, ou seja romances, novelas, contos, teatro, poesia, epistolar, reflexões. Pode?
– Claro que não pode. E a que você atribui essa difamação?
– Os meios acadêmicos são muito elitistas.
– Mas esses meios duvidam de você ou do Deschamps?
– Eu não sei. O impostor pode ser tanto eu quanto o Deschamps.
– Que loucura!
– Mas acho que o Deschamps está em piores lençóis do que eu.
– Eu também acho.
– Ah, Acia! Não sei o que fazer.
– Querido, seja paciente. O tempo vai ajudar e a verdade vai aparecer.
– O Deschamps está fazendo um dossiê sobre minha pessoa física e sobre minha obra literária. Um dossiê muito bem documentado.
– Confie nesse dossiê que vai esclarecer toda a verdade.
– Estou confiando, minha amiga. Mas tudo isso é muito estranho, muito esquisito, muito insólito. Muito kafkiano. E muito mesquinho.
– Eu entendo, meu querido.
E finalmente posamos no aeroporto de Ibn Battouta, em Tânger.
14-07-22
Deixe um comentário